“Reparou o padrão? Beijo e depois chute.”: padrão de violência não é romance

Cena 1: um porão, onde uma garota sozinha é surpreendida pelo ex-namorado que entra no local pelo teto.

Ela fica visivelmente enfurecida com a presença dele e passa a ameaçá-lo com uma faca, ordenando que vá embora.

Os amigos do rapaz – dois meninos e duas meninas – , que até então o aguardam do lado de fora, entram no lugar e rendem a garota, sendo tudo filmado por um dos amigos. Toda a ação é supervisionada por um adulto, que os orienta e incentiva.

A garota rendida grita e se debate. Uma das meninas que a seguram propõe: “Vamos ter que fazer como o Capitão Nascimento: põe ela no saco.”

Ensacada, e sempre aos gritos e tentando escapar, a vítima é carregada pela rua, sob os olhares surpresos dos transeuntes. “Não é nada, gente! É só uma gata selvagem que a gente vai levar pro zoológico!”, explica um dos sequestradores. Ninguém intervém, deixando a menina à mercê de seis algozes: seu ex-namorado, os quatro amigos, mais um adulto.

A moça é colocada no porta-malas de um carro, sob beijos forçados do ex-namorado, enquanto os amigos dele conduzem o veículo.

Corta.

Cena 2: o carro chega em um lugar ermo, à noite.

A garota ensacada é retirada do porta-malas, sempre se debatendo e gritando por socorro. “Nada de mão-boba com a minha namorada!”, adverte o ex-namorado da vítima, que conduz a ação.

O adulto que acompanha os adolescentes sequestradores sugere que o ex-namorado da vítima a leve para o banheiro feminino do lugar onde estão, pois foi lá que se conheceram.

A sugestão é prontamente aceita: “’É bom para ela se lembrar os bons momentos que tivemos juntos. Vou dando beijinho até ela se acalmar.”

Sempre auxiliado pelos amigos, o ex-namorado sequestrador e a vítima são trancados no banheiro feminino: “a gente é sequestrador, mas é educado!”, diz um dos meninos em tom de piada.

Corta.

Cena 3: vítima e ex-namorado sequestrador estão sozinhos no banheiro feminino.

Ela permanece ensacada e com uma meia na boca, que a impede de gritar por socorro.

O rapaz se dirige à moça: “Agora que estamos só nós, podemos ficar mais à vontade. Você está linda. Vou tirar a meia da sua boca pra gente já pular pra parte em que a gente faz as pazes.”

Ela grita e pede para ser solta. Ele indaga: “E se eu disser que te amo?” E ela retruca: “E se eu disser que te odeio? Você é um sequestrador de ex-namorada!”

Diante da reação da vítima, o sequestrador recoloca a meia na boca dela: “Vamos começar de novo. Agora só eu falo.”

Corta.

Cena 4: vítima e sequestrador continuam no banheiro. 

A moça permanece amarrada dentro do saco e com a meia na boca, enquanto seu sequestrador divaga: “Vamos aproveitar esse clima a dois…foi amor ao 1o chute no saco…”

Entram cenas em flashback de todas as interações do casal: sempre com violências físicas de ambas as partes, e vários beijos e contatos íntimos forçados pelo rapaz, acompanhados de frases como: “Sabe do que você está precisando?”, com reações violentas por parte dela: “Eu falei pra você me soltar!”

De volta ao tempo presente, o sequestrador diz para sua vítima: “Reparou o padrão? Um beijo, um chute”.

Em uma tentativa de escapar, a moça procura seduzir seu sequestrador e enfim o convence a soltá-la. Vendo-se livre, a moça passa a agredir o sequestrador e tentar fugir. Em vão: os outros quatro amigos adolescentes que compõem a quadrilha invadem o recinto e novamente rendem a vítima. O adulto, que acompanha a ação o tempo todo, recomenda: “Nada como uma boa noite no saco para acalmar o espírito.”

Novamente amarrada e com a meia na boca, a vítima é colocada de volta no saco. O ex-namorado a abraça e beija forçadamente, enquanto ela se debate desesperada.

Desfecho: ela passa a noite sequestrada, enquanto o ex tenta convencê-la a reatar a relação.

 

Esta sequência assustadora poderia fazer parte do roteiro de um episódio de Law and Order -Special Victims Unit, ou de Criminal Minds, ambas séries norte-americanas que tem como argumento central a investigação de delitos (frequentemente de natureza sexual) praticados por personagens retratados como psicopatas. Mas a frase que dá título a este artigo é uma fala do personagem Pedro (interpretado pelo ator Rafael Vitti), integrante da atual temporada de Malhação, da Rede Globo. A atração está no ar há quase 20 anos e é direcionada ao público adolescente, e exibida à tarde, naquele típico horário “logo depois da escola”, sendo indicado para telespectadores a partir de 10 anos de idade.

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O personagem Pedro faz par romântico com Karina (papel da atriz Isabella Santoni), e o casal aparentemente tem feito sucesso, sendo apelidado de “Perina”, seguindo o atual modismo das “bradgelinas” (como os tablóides identificam o casal-celebridade Brad Pitt e Angelina Jolie), de se unir os nomes de famosos que formam casais como se os dois fossem uma identidade única – o que já dá um tanto pra pensar. Mas há muito mais o que discutir aqui, e essa fusão compulsória das metades da laranja fica para uma outra vez.

As cenas descritas acima podem ser assistidas neste link. Foram exibidas no episódio do dia 09 de março e vêm sendo bastante comentadas nas redes sociais: com trilha sonora que remete a uma comédia, o sequestro de Karina é intitulado de Operação Donzela de Ferro, e mostrado como um amor romântico demais, no qual a vítima seria o incompreendido Pedro. Na novela, Karina é apelidada de “esquentadinha”, e não é demais notar que a personagem é construída em um estereótipo que seria um avesso das mocinhas tradicionais: de cabelos curtos e pouca maquiagem, a garota pratica muay-thai e é excessivamente agressiva – o exato oposto do que seria normal e esperado, e por isso ela resiste às investidas do “romântico” Pedro.

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O casal, desde o início da trama, é mostrado como um “romance cheio de confusões”(esta reportagem da revista Todateen trata da questão exatamente neste tom), eufemismo para uma violência que no caso das cenas aqui comentadas sequer se satisfaz com o campo do simbólico: as condutas de Pedro e seus amigos são tipificadas no Código Penal como sequestro e até mesmo tentativa de estupro.

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O grave problema de representar como um intenso romance adolescente esse tipo de relação é que condutas extremamente violentas passam a ser inconscientemente internalizadas como normais e aceitáveis. A narrativa ficcional dá um sentido valorativo àquilo que exibe, e daí crescer aprendendo que homem apaixonado e romântico é aquele disposto a tudo – até mesmo a crimes – em nome do “amor” correspondido da vítima é ensinar desde pequeno que essas violências devem ser lidas como manifestações de afeto.

E mais grave ainda é que o produto televisivo Malhação seja direcionado ao público adolescente, que está justamente em fase de formação de valores individuais e que busca se espelhar em comportamentos tido como desejáveis e dignos de aplauso em  ídolos que encontra em celebridades ficcionais ou da vida “real” (irresistíveis estas aspas).

Não é demais transcrever aqui alguns comentários de internautas, extraídos do site oficial da atração:

Aah que palhaçada, eu não perco nenhum capitulo, e acho lindo tudo o que ta acontecendo e tudo o que o Pedro ta fazendo pra reconquistar Karina. Ele sequestrou ela na intenção de tentar retomar o namoro, de tentar fazer com que ela acredite que ele realmente há ama de verdade. Isso não faz mal para ninguém, e é muito diferente da ação de um cara louco, psicopata e que quer fazer qualquer coisa para voltar com a ex, inclusive machuca-lá. E ali não foi bem um sequestro, sequestro a pessoa leva a outra pra um local longe e não para o banheiro da academia onde o pai dela dá aulas de muai thay.

nada a ve ele nao mau trato ela nao ele so tava querendo se desculpar com ela mas ela nao dava a minima pra ela. para pra assistir a novela do começo pra entender e nao ficar falando besteira. So uma coisa querida internautas nao ” Fã’’

concordo plenamente pra isso ser um sequestro de verdade ele usaria ele, estuprava ela e depois jogava ela no mato no mei da rua. E nao aconteceu nada disso. esse povo nao tem o que fazer

Quando se ensina desde criança que amor bom é o amor que leva até as últimas consequências, como convencer a garota da vida real que, aos 14 anos é agredida (psicologicamente, fisicamente ou sexualmente) por um namorado, de que aquela violência não é amor? De que é assim que uma relação violenta progride até a violência letal?

Não é raro que obras televisivas retratem assim relacionamentos de profunda violência. Se já houve acertos em novelas e séries que abordaram o tema da violência doméstica contra a mulher, ainda há escorregões que continuam a legitimar o argumento do crime passional (neste artigo, faço uma breve retrospectiva sobre a representação da violência doméstica contra a mulher na TV).

Podemos alterar o Código Penal. Podemos colocar o quanto quiser de pena para o feminicídio. Podemos criar tipo penal à vontade. Enquanto se continuar a ensinar e aprender que mulher “esquentadinha” se doma na base do tapinha de amor que não dói, continuaremos a, no máximo, punir assassinos. E mulheres continuarão sendo mortas por seus parceiros, em nome do amor.

 

Para saber mais: vale ler a reflexão da Tamara Amoroso Gonçalves neste artigo, vai lá!

08 anos de Lei Maria da Penha: como a violência doméstica contra mulheres é mostrada na TV? Uma breve retrospectiva.

Neste 07 de agosto de 2014, a Lei Maria da Penha (nº 11.340/2006) completou oito anos de vigência. O texto foi publicado em 2006 como resultado de uma recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao Estado brasileiro, em consequência da denúncia feita a partir do caso de Maria da Penha Fernandes Maia[1], para que se criassem mecanismos para combater a violência doméstica contra a mulher.

É sempre bom aproveitar o assunto para esclarecer equívocos recorrentes sobre a Lei Maria da Penha: a lei não cria o “crime de violência doméstica”, mas sim proporciona procedimentos diferenciados para quaisquer crimes praticados contra mulheres no âmbito doméstico e familiar. Outro erro comum é achar que só a violência física era crime antes da lei: ameaça e calúnia (formas de violência psicológica e moral) sempre foram crimes (artigos 147 e 138 do Código Penal) – o que não se previa em lei eram estes trâmites diferenciados (tais como as medidas protetivas de urgência e a possibilidade de contar com um único juízo para processar causas cíveis e criminais).

Também se equivoca quem afirma que antes da Lei Maria da Penha os casos de violência doméstica contra a mulher eram considerados de menor potencial ofensivo por serem praticados no âmbito privado: o que acontecia (e ainda acontece) é que, estatisticamente, as agressões praticadas contra mulheres por seus companheiros constituem juridicamente, em sua grande maioria, crimes de ameaça e lesão corporal leve. Por terem penas máximas inferiores a dois anos de prisão, estes crimes são classificados como infração de menor potencial ofensivo (independentemente de autor e vítima serem homens ou mulheres), e, por isso, julgados pelos Juizados Especiais Criminais. De qualquer forma, a Lei Maria da Penha passou a determinar que, independentemente do crime praticado (de alto ou baixo potencial ofensivo), os casos de agressão a mulheres no âmbito doméstico não pode ser julgado pelos JECRIM, devendo ser submetido aos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.

Hoje, quase uma década após a entrada da lei em vigor, já é possível fazer um balanço dos erros e acertos da proposta. Apesar do seu texto conter dispositivos de tecnicidade jurídica questionável – e que tem levado os tribunais a infindáveis debates, como ocorre com a questão da necessidade de representação da vítima, ou a extensão da inaplicabilidade das regras dos Juizados Especiais Criminais – , acredito que a Lei Maria da Penha tem o mérito de ter trazido o problema da violência doméstica contra a mulher para o debate público, e isso, claro, gera repercussões nas representações da mídia.  E aqui no Deu na TV, convido a analisarmos a forma como a violência doméstica contra as mulheres foi sendo retratada nas ficções televisivas nas últimas décadas. Para esta breve retrospectiva, selecionei alguns programas que me parecem marcantes sobre o tema. Continuar lendo

Não adianta tratar como se fosse assaltante de rua

* análise sobre as estatísticas dos casos de violência contra a mulher, publicada na versão on line do jornal o Estado de São Paulo, em 26 de setembro de 2013. Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,nao-adianta-tratar-como-se-fosse-assaltante-de-rua,1078880,0.htm

 

A pesquisa trouxe o resultado esperado. Enquanto existir um modelo punitivo, não haverá prevenção. E a punição ocorre quando a mulher já foi vítima do crime. A lei tem sua importância, mas não a usamos na totalidade, como campanhas contra a violência, mudança na educação da população e atendimento multidisciplinar.

O único caminho é a delegacia da mulher. E não é um crime comum, acontece entre pessoas que tem um relacionamento. Não adianta querer tratar como se fosse um assaltante de rua. O positivo é que a lei trouxe o assunto para a opinião pública. Hoje a violência contra a mulher é considerada uma violação de direitos humanos, e o Brasil tem um compromisso assumido.

 

 

A Lei Maria da Penha na prática: o cotidiano das Delegacias da Mulher em São Paulo

Paper apresentado em 2010 na 9ª edição do evento Fazendo Gênero, realizado pela Universidade Federal de Santa Catarina. Trabalho produzido em co-autoria com Tatiana dos Santos Perrone.Também disponível em: http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/resources/anais/1278192683_ARQUIVO_OCotidianodasDDMemSP.pdf

Maíra Cardoso Zapater 1

Tatiana Santos Perrone 2

O presente trabalho consiste em uma etnografia das nove Delegacias de Defesa da Mulher de São Paulo, realizada entre janeiro e fevereiro de 2010, com a finalidade de monitorar a aplicação da Lei Maria da Penha. A pesquisa se deu por meio de entrevistas semi-dirigidas com as delegadas e visitas in loco, visando, em um primeiro momento, conferir os recursos materiais e humanos existentes, bem como as articulações existentes entre instituições da rede de atendimento a vítimas e as delegacias. Em um segundo momento, através de dados colhidos em caderno de campo, procurou-se analisar os discursos subjacentes à prática (e a eventual existência de preconceitos e estereótipos na fala das entrevistadas), e como esses discursos enviesam ou não o trabalho de combate à violência contra a mulher. Por fim, são propostas reflexões tanto referentes à qualidade do atendimento oferecido às vítimas, bem como quanto à adequação da Lei Maria da Penha à finalidade a que se propõe, a partir da óptica das entrevistadas.

Impressões gerais

 

            A cidade de São Paulo conta com 9 Delegacias de Defesa da Mulher e 1 Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência exclusiva para os casos de violência doméstica.[1].

O número de delegacias foi determinado pelo número de Seccionais de Polícia da cidade: cada seccional conta com uma DDM, responsável por todos os casos de violência contra a mulher que ocorram em qualquer um dos distritos. Embora haja subordinação das DDMs às Seccionais[2], a coordenação de todo o trabalho é realizado pela Dra. Márcia Salgado, delegada responsável pela Assessoria das DDMs.

Somente a 1ª DDM (localizada no centro da cidade) oferece plantão 24 horas e aos finais de semana. Todas as demais DDMs atuam apenas de 2ª à 6ª feira, das 9:00 horas às 18:00 horas.  Para serem atendidas fora deste horário, as vítimas devem recorrer a um DP comum, ou à 1ª DDM. O acesso à 1ª DDM pode ser complicado para pessoas que vivam em regiões distantes do centro da cidade, em razão das grandes distâncias (não raro superiores a 20 km) e da limitação de horário de funcionamento do transporte coletivo. Um outro problema apontado pela própria delegada titular da 1ª DDM é a insegurança do local onde a delegacia está localizada, pois no período noturno há muitos pedintes, usuários de entorpecentes, além do risco de assaltos. Essa falta de plantão nos bairros leva à lotação das DDMs nas 2ªs e 3ªs feiras, conforme nos foi relatado por todas as delegadas.

O principal problema apontado por quase todas as delegadas se refere aos recursos humanos: em quase todas as delegacias o número de funcionários é insuficiente, e, além disso, poucos querem trabalhar nessa área. O discurso das delegadas foi uníssono no sentido de que o funcionário deve estar sensibilizado para o tema da violência doméstica (e para a violência contra a mulher de uma forma geral), e muitas preferem trabalhar com poucos funcionários a precisar contar com funcionários desinteressados e que atendam mal às vítimas.  Um dos problemas enfrentados pelas delegadas é a desmotivação dos funcionários frente aos altos índices de desistência das vítimas. Eles sentem que todo trabalho feito em um boletim de ocorrência ou inquérito policial foi feito em vão nos casos em que as vítimas não querem dar continuidade a denúncia. As delegadas com mais tempo de DDM falam aos seus funcionários que a delegacia deve ser uma porta aberta às vítimas e que devem receber quantas denúncias forem necessárias até que a mesma decida quando deve dar continuidade à denúncia. O papel da Delegacia  deve ser de um órgão estatal que acolhe as vítimas da melhor forma possível, para que assim elas possam sentir segurança ao dar continuidade à denúncia.

Por outro lado, muitas das entrevistadas apontaram melhorias nos recursos materiais nos últimos anos. Especialmente aquelas que estão há mais tempo na polícia afirmaram ter observado uma maior facilidade em solicitar e receber materiais.

Em relação à articulação com a rede de atendimento, a variação foi grande de uma delegacia para outra, pois na maioria dos casos esta articulação depende mais de empenho e contatos pessoais da delegada do que de ações institucionais. Foram freqüentes queixas relacionadas aos Conselhos Tutelares e à Defensoria Pública. Quanto a esta última, os atritos têm se dado por conta das vítimas que procuram a Delegacia com a finalidade de se separar do agressor, sem, contudo, processá-lo criminalmente, sendo encaminhadas pelas delegadas à Defensoria Pública, para que ajuízem a ação de separação. Ao chegar à Defensoria, as mulheres dizem aos defensores, nas palavras das delegadas, “que a delegacia não resolveu nada para elas”. Alguns defensores chegaram a oficiar a Corregedoria da Polícia, denunciando a suposta negligência da Delegacia em não registrar a ocorrência, o que tem incomodado bastante as delegadas.

Outro problema de articulação bastante mencionado diz respeito à falta de uniformidade de posicionamento do Judiciário em relação à necessidade ou não de representação da vítima nas ações penais por lesão corporal dolosa leve.[3] Quase todas as delegacias[4] atendem a mais de um foro regional, e, portanto, trabalham com mais de um juiz das varas de competência cumulada, sendo freqüente que juízes de foros próximos tenham posicionamentos opostos a respeito desta questão. Alguns chegam inclusive a determinar a lavratura de Termo Circunstanciado ao invés de instauração de Inquérito Policial[5], gerando nas vítimas e delegadas uma insegurança jurídica, pois a delegada, não tendo certeza de qual tratamento cada caso vai receber na Justiça, não sabe como orientar as mulheres.

Todavia, ao que parece, os magistrados estão buscando solucionar o problema da falta de uniformidade de entendimento. Por ocasião de nossa visita à Assessoria, obtivemos um rol de 16 enunciados aprovados no 1º Fórum Nacional de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com escopo de servir como orientação aos magistrados de todo o país que atuam nos JVDs.

Um último ponto abordado por quase todas as delegadas diz respeito à imagem que a mídia constrói da Polícia, especialmente nos casos de violência doméstica. Que só apontam os problemas existentes, sem se preocupar em noticiar os progressos e os casos de sucesso. Nossas visitas às delegacias coincidiram com a veiculação na mídia de um caso de homicídio de uma mulher, por seu ex-companheiro, filmado por ela mesma, que havia instalado uma câmera de vídeo no salão de beleza onde trabalhava, justamente por temer algum ataque dele. Segundo foi noticiado à época, foram lavrados 8 boletins de ocorrência por ameaça, tendo sido deferida medida protetiva de proibição de aproximação, descumprida pelo agressor, que acabou por assassinar a vítima. Várias delegadas comentaram o caso em relação a como a polícia e a Justiça foram retratadas, como se as autoridades nada tivessem feito para impedir o crime, quando todos os profissionais envolvidos agiram estritamente nos limites permitidos (e determinados) pela lei.

 

AS VÁRIAS INTERFACES DO CONFLITO DOMÉSTICO

            Na pesquisa de mestrado de Tatiana Santos Perrone intitulada Ação de alimentos: mulheres de baixa renda e o acesso à justiça, a autora realizou 35 entrevistas com mulheres que entraram ou estavam entrando com ações de alimentos contra o pai de seu(s) filho(s)[6]. Uma das questões que apareceu com maior freqüência foi a violência doméstica sofrida pelas entrevistadas durante os anos de convivência com o ex-companheiro. Das 35 mulheres entrevistadas, 19 haviam sofrido algum tipo de violência doméstica, ou seja, 54% [7]. Das 19 mulheres que sofreram violência doméstica, 15 delas sofreram violência física e dessas 15, cinco sofreram mais de um tipo de violência, passando pela ameaça e violência verbal. Em outras palavras, embora as vítimas tenham procurado a Justiça Cível, os processos ajuizados traziam questões criminais misturadas às questões de família.

Com a Lei 11.340/2006 incorporaram-se aos procedimentos criminais algumas medidas protetivas de urgência que versam sobre matéria discutida no âmbito do direito cível. A fixação de alimentos provisórios e afastamento do agressor do lar são duas medidas protetivas que podem ser requeridas pela vítima e deve ser apreciada pelo juiz no prazo de 48 horas. A lei parece extremamente interessante por abarcar outras questões do conflito doméstico além da violência.

No caso da ação de alimentos ajuizada na Vara de Família, durante a audiência de conciliação não há a possibilidade de discussão de outras questões além do valor da pensão alimentícia, podendo haver abertura para regulamentação das visitas, caso o conciliador concorde. Porém, não há espaço para discussão de condutas criminosas. Assim, a Lei Maria da Penha parece trazer uma inovação com as medidas protetivas ao conciliar questões penais com questões cíveis. Cabe saber como isso está se dando na prática.

Com a participação na pesquisa Monitoramento e aplicação da Lei Maria da Penha, coordenada pelo Observatório Lei Maria da Penha, pudemos constatar que os processos cíveis não são iniciados no Juizado de Violência Doméstica. A Juíza do JVD defere as medidas por um tempo determinado, como por exemplo, os alimentos provisórios, e encaminha a parte à Defensoria, que fica no próprio prédio, a quem incumbe entrar com o processo no qual será definido o valor definitivo dos alimentos. Esse processo correrá pela Vara de Família do Fórum Regional, que fica provavelmente mais próximo à residência da vítima do que o Juizado (que, como dito, fica no Foro Central Criminal). Ou seja, a divisão entre procedimento criminal e cível continua ocorrendo na prática, diferentemente da nova determinação legal.

Em uma das delegacias pesquisadas observamos, logo na entrada, uma preocupação em ressaltar o que poderia ser resolvido na delegacia e o que poderia ser resolvido com um advogado, ou seja, uma explicação da diferença entre procedimentos criminais e cíveis. Um cartaz fixado no mural de avisos explica a diferença entre boletim de ocorrência e separação judicial, bem como os resultados e conseqüências de cada procedimento. Coloca também que o afastamento do lar pode ser requerido junto a um advogado e que esse procedimento não gera uma “ficha criminal”, diferente do que ocorre no caso de uma denúncia criminal. O cartaz mostra que há uma percepção de que a relação do casal envolve outras questões que ultrapassam o âmbito da esfera criminal e que algumas mulheres que procuram a delegacia não desejam ver os seus companheiros processados criminalmente, ou seja, não querem que eles tenham uma “ficha criminal”, querem o fim da violência ou a separação.

A relação existente entre vítima e agressor é geralmente uma relação afetiva a qual pode ter gerado filhos. Registrar um inquérito policial significa tornar o ex-marido e pai de seus filhos um criminoso. Será que as mulheres desejam a criminalização desse homem? Percebendo como é delicada essa questão, a delegada desta mesma delegacia, que já foi vítima de violência doméstica, faz questão de informar as vítimas sobre as diferenças entre processo criminal e civil. Durante os anos de trabalho, ela percebeu que muitas não querem que o agressor seja processado criminalmente e sim afastado do lar. Isso pode ser conseguido junto à Defensoria. No entanto, nos alerta a delegada, na Defensoria a mulher deverá esperar cerca de seis meses para conseguir tirar o agressor do lar e os Defensores informam que na delegacia o procedimento é muito mais rápido.

As delegadas informaram ser recorrente as vítimas desistirem do registro da ocorrência ou arrependerem-se posteriormente. Isso pode estar ligado ao fato de que os procedimentos criminais não se adéqüem às expectativas de algumas vítimas.

É o caso de Luisa, entrevistada dia 15 de setembro de 2008, que apesar de ter registrado boletim de ocorrência em relação à última agressão sofrida, não quer que aconteça nada com o pai de sua filha. “Só quero que ele me deixe em paz! Só isso.” E diz, que se ele continuar ameaçando, ela abrirá outro boletim de ocorrência, e aí sim vai querer que ele seja chamado pela Justiça e que seja condenado a pagar uma cesta básica ou a prisão.

Em situação semelhante, Rita, entrevistada no dia 29 de setembro de 2008, declarou que foi agredidas várias vezes, mas que não procurou a delegacia porque o amava e ainda o ama. Cristina, entrevistada no dia 27 de março de 2008, disse que não denunciou o ex-marido pelas agressões porque considerava pior o marido ser preso, pois assim ela ficaria mais desamparada do que já se encontrava e teria que criar os filhos sozinha.

Quando falamos em violência doméstica, falamos de vítimas e agressores que possuem laços afetivos. Nos casos aqui descritos, os agressores são os pais de seus filhos e uma pena de prisão é, na maioria dos casos, impensável para as mães. Izumino (2003) e Fazting (2004) afirmam que as mulheres que não romperam suas relações com os agressores não esperam uma condenação, e sim uma advertência verbal aos seus companheiros. Nos casos em que não há uma relação a ser preservada, é transferida para a Justiça a imposição de alguma sanção penal.

A questão da violência mostra a multiplicidade do conflito, em que várias questões estão em jogo e que talvez a resolução criminal não seja considerada a mais adequada para uma parte das mulheres, principalmente por tratar as partes como vítimas versus agressores. A denúncia parece ser uma tentativa de parar com ameaças e agressões, que não são vistas em nenhum momento pelas entrevistadas como um crime. Elas querem regularizar a situação após a separação e suas expectativas com a denúncia não estão ligadas a uma penalização e sim um cessar das agressões.

CRÍTICAS QUANTO AOS ASPECTOS TÉCNICO-JURÍDICOS DA LEI

Em que pesem as conclusões extraídas do campo de que a a via da justiça criminal talvez não seja considerado pelas vítimas o meio mais adequado para solucionar o conflito doméstico e a violência dele decorrente, não se pode deixar de apontar pontos positivos da referida legislação sob o prisma técnico-jurídico.

A primeira (e talvez principal) crítica feita à Lei Maria da Penha no meio jurídico se deu quanto à sua suposta inconstitucionalidade[8]: desde o início de sua vigência, a Lei 11.340/06 vem sendo considerada por seus opositores como inconstitucional, uma vez que sua aplicabilidade exclusiva a vítimas de violência do sexo feminino seria, segundo estes críticos, uma violação ao princípio da igualdade, consagrado no artigo 5º, caput, da Constituição Federal, e especificamente no inciso I do mesmo artigo (o qual prevê que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”). Compactuamos, porém, com o entendimento segundo o qual a Lei Maria da Penha está de acordo com o texto da Constituição Federal. Embora a Lei dispense tratamento desigual à mulher[9], esta desigualdade é juridicamente válida, uma vez que o direito à igualdade garantido pela Constituição Federal deve ser interpretado como tratar-se igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades, com a finalidade de se implementar a igualdade real entre os cidadãos, e não só a igualdade meramente formal[10].

Em outras palavras, isto significa dizer que a Lei Maria da Penha leva em consideração o tratamento historicamente desigual de que a mulher foi vítima, sendo não só válido, mas também necessário que a lei preveja, por esta razão, tratamento diferenciado.  Ademais, a Lei 11.340/06 está em consonância com os tratados internacionais sobre o tema ratificados pelo Brasil[11], o que coloca o país em harmonia com a ordem internacional.

Em nosso entendimento, porém, o maior avanço trazido pela Lei Maria da Penha, sob o ponto de vista técnico-jurídico, foi, por meio do afastamento da aplicação da Lei 9.099/95 [12], de passar a considerar que os crimes praticados em situação de violência doméstica não são de baixo potencial ofensivo, quer em relação aos danos sofridos pelas vítimas, quer em relação às consequências sociais da conduta. Embora as penas previstas para muitas das infrações praticadas na esfera da Lei 11.340/06 as enquadre no conceito legal de infração de menor potencial ofensivo, não se pode afirmar que estas infrações sejam, de fato, de pouca gravidade, na medida em que constituem grave questão social e problema de saúde pública, além de banalizarem a violência, a qual, especialmente quando praticada dentro do lar, traduz-se em normalidade cotidiana e presença constante na vida de crianças e adolescentes, com todas as decorrências desta situação.

Por outro lado, a partir da coleta de dados em campo, não se pode deixar de notar pontos criticáveis na legislação e que, na prática interferem (quando não inviabilizam) justamente na consecução do objetivo maior da Lei Maria da Penha, que é o combate à violência doméstica contra a mulher. Paradoxalmente, a principal observação a ser tecida decorre justamente do afastamento da Lei 9.099/95, como se passa a explicar.

O artigo 41 da Lei Maria da Penha determina:

Art. 41.  Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995.

De acordo com a interpretação dominante deste artigo, a Lei 9.099/95 estaria integralmente afastada do processamento e julgamento dos crimes praticados em situação de violência doméstica. Todavia, o artigo 88 da mesma Lei 9.099/95 prevê a necessidade de representação[13] nas ações penais propostas em face dos crimes de lesão corporal dolosa leve e lesão corporal culposa[14]. Com a vedação da aplicação desta lei por força do artigo 41 da Lei Maria da Penha instaurou-se entre os magistrados paulistas a seguinte discussão: estaria a Lei 9.099/95, de fato, integralmente afastada dos casos de violência doméstica (incluindo-se aqui o afastamento da representação nos crimes de lesão corporal leve), ou estariam afastadas apenas as medidas despenalizadoras aplicadas pelos Juizados Especiais Criminais[15] (mantendo-se outros institutos processuais como a referida representação)?

Apesar de o 1º posicionamento (afastamento integral da Lei 9.099/95 dos crimes praticados em situação de violência doméstica) ganhar fôlego entre os doutrinadores penais, a falta de consenso entre os juízes acerca da necessidade ou não da representação prevista no artigo 88 da Lei 9.099/95 foi relatada por todas as delegadas entrevistadas. Em um dos relatos mais marcantes, uma delegada que atua junto a dois foros regionais geograficamente próximos (atendendo, portanto, à mesma população) revelou-nos que os juízes (titulares de varas adaptadas) têm entendimento oposto em relação a esta questão da representação, o que gera situações fáticas intrigantes, como a de pessoas praticamente vizinhas, que levam suas demandas ao Judiciário e têm soluções opostas[16] para problemas muito semelhantes. Tais situações, segundo a delegada, vêm abalando a credibilidade na Lei Maria da Penha perante a população.

É de se ponderar, portanto, dois aspectos: primeiro, se a redação do artigo 41 da Lei Maria da Penha é suficientemente clara, a ponto de não deixar dúvidas ao intérprete quanto ao seu alcance. E, em segundo lugar (e talvez mais importante), imprescindível o questionamento: tomando-se por premissa que a intenção do legislador era a de extinguir a possibilidade de a vítima retirar sua representação (e assim desautorizar o Ministério Público a prosseguir na persecução penal), teria esta intenção o condão de atingir o objetivo maior da Lei Maria da Penha, qual seja, a redução da violência contra a mulher?

A opção pela Ação Penal sem necessidade de representação da vítima (o que permite que a ação penal possa ser proposta até mesmo contra a vontade desta) imprime um viés público ao conflito, ao delegar ao Ministério Público o dever[17] incondicional de perseguir o autor das agressões. O processo penal sempre afasta a vítima da relação criminal travada entre réu e Estado; todavia, nos crimes dependentes de representação da vítima, esta ainda possui algum poder de decisão acerca da continuidade da persecução criminal.  Como dito anteriormente, nos casos de não haver uma relação a ser preservada entre vítima e agressor, a vítima, ao representar, transfere para o Estado a incumbência de apenar o autor do fato, diferentemente daquelas que pretendem conservar sua relação, mas em outros termos, e esperam do Estado uma advertência verbal que auxilie na consecução deste objetivo.

Nas palavras de Wânia Pasinato, a não aplicação de uma sanção penal não deve ser entendida como representação de uma impunidade ou de falta de reprovabilidade social da conduta, mas sim como a possibilidade de se solucionar o conflito em outras esferas, o que não significa retornar a tratar o problema de forma restrita ao âmbito do casamento, do lar e da família. Como relatado nas entrevistas, as mulheres procuraram a justiça cível talvez por a considerarem mais adequada a seus propósitos, bem como mais permeável a tentativas de conciliação, ao invés de mera aplicação de pena, havendo maior espaço para negociação de seus desejos, o que refletiria, em nosso entender, uma consideração desta vítima não como tal, mas como sujeito portador de voz e de discurso que devem ser considerados, o que é impossível na esfera penal.

A aplicação concreta de uma lei criminalizadora necessita, imprescindivelmente, da prática da conduta que pretende coibir. Daí a formação do paradoxo: a lei penal é posta em vigor com a finalidade oficial de reduzir uma determinada prática (violenta, no mais das vezes). Mas, para que seja aplicada a lei, é necessário que a conduta seja praticada. Em outras palavras: o crime precede, necessariamente, a punição. Então qual é o interesse de se aumentar o número de punições, se estas refletem o aumento da violência? Qual a vantagem de se buscar mais punição? Punir mais implica resolução de conflitos? Terá a punição o condão de modificar mentalidades e estruturas socioculturais?

Fontes

Decisão da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 19 (voto do relator). Acesso em 02/06/2010.    http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/a dc19.pdf

 

Referências bibliográficas

 

GIRINGHELLI, Rodrigo Azevedo. Sistema Penal e Violência de Gênero. Uma análise sóciojurídica da Lei 11.340/06. Sociedade e Estado, Brasília, v. 23, n. 1, p. 113-135, jan./ abr. 2008.

IZUMINO, Wânia Pasinato. Violência contra a mulher no Brasil: acesso à Justiça e construção da cidadania de gênero. Paper apresentado no VIII- Congresso Luso-Brasileiro de Ciências Sociais (Universidade de Coimbra, set/2004.)

RIFIOTIS, Theophilos. As delegacias de proteção à mulher no Brasil e a judiciarização dos conflitos conjugais. Sociedade e Estado, Brasília, v. 19, n. 1, p. 85-119, jan./ abr. 2004.


[1]Há, ainda, varas criminais que cumulam competência para processar e julgar crimes apenados com detenção (em geral), e crimes de violência doméstica, conforme determinado pela Resolução nº 286/2006 do Tribunal de Justiça de São Paulo. A jurisdição criminal da capital é dividida em foro central (Barra Funda, competente para processar e julgar crimes apenados com reclusão de toda a cidade, além dos crimes apenados com detenção praticados dentro de sua competência territorial, e também onde está localizado o JVD central) e foros regionais, cujas varas criminais são competentes para processar e julgar crimes apenados com detenção em geral.

[2]              O que foi apontado como um problema por várias entrevistadas, que gostariam de estar hierarquicamente subordinadas a um órgão específico relacionado às DDMs.

[3]              Em relação ao artigo 41 da Lei 11.340/06, que afasta na íntegra a Lei 9099/95, na qual consta a necessidade de representação nas ações penais por lesão corporal dolosa leve.

[4]              Como a 7ª DDM, de Itaquera, que atua junto aos foros regionais de Itaquera e São Miguel Paulista; ou a 8ª DDM, que atende aos foros do Ipiranga, Penha, Tatuapé e Itaquera, entre outras.

[5]              O Código de Processo Penal determina a instauração de inquérito policial antes da propositura de ação penal, sempre que houver necessidade de se investigar e apurar a indícios de ocorrência de crime. A Lei 9.099/95 (cuja aplicação foi afastada dos crimes de violência doméstica), porém, ao tratar das infrações de menor potencial ofensivo, prevê procedimento mais célere no qual se deve lavrar Termo Circunstanciado, mais sucinto, em substituição ao inquérito. Portanto, ao determinar a lavratura de Termo Circunstanciado ao invés de inquérito policial, o juiz manifesta seu entendimento de que os crimes de violência doméstica seriam infrações de menor potencial ofensivo, indo de encontro ao espírito da lei Maria da Penha.

[6]              A pesquisa encontra-se em andamento.

[7]              O tema da violência doméstica apareceu no primeiro dia de entrevista. Depois de comentar com alguns funcionários e ouvir deles que mais de 50% das mulheres que pedem pensão sofreram violência doméstica, passei questionar as entrevistadas sobre o assunto. Das 35 mulheres entrevistadas, nove (26%) declaram não ter sofrido violência doméstica e sete (20%) não informaram ou não lhes foi perguntado.

[8]              A lei foi objeto da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 19, proposta perante o Supremo Tribunal Federal pelo Presidente Luís Inácio Lula da Silva, para suspender os efeitos de decisões judiciais que negassem vigência à nova lei. Referida ação foi indeferida pelo Ministro Relator Marco Aurélio, o que implica, na prática, que juízes de instâncias inferiores podem proferir decisão recusando-se a aplicar a Lei Maria da Penha, sob o argumento de suposta inconstitucionalidade.

[9]              Em relação ao homem vítima de violência doméstica.

[10]             Ou seja, o direito à igualdade não se resume à sua formalização no texto da lei, sendo necessário que se observe uma igualdade concreta em relação aos bens da vida e acesso efetivo a direitos.

[11]             Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (1979) e Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará – 1994).

[12]             Cria os Juizados Especiais Criminais, com competência para processar e julgar as infrações de menor potencial ofensivo, assim consideradas aquelas cuja pena máxima prevista em lei não ultrapasse 2 anos.

[13]             Autorização da vítima para que o Ministério Público proponha ação penal em face do acusado. Trata-se de hipótese excepcional, sempre decorrente de previsão legal expressa. Não havendo menção na lei quanto à necessidade de representação, a ação penal será pública e incondicionada, o que quer dizer que o Promotor de Justiça não dependerá de qualquer condição para dar início ao processo criminal, podendo fazê-lo inclusive contra a vontade da vítima.

[14]             O que, até o advento da Lei Maria da Penha, se aplicava a todo e qualquer crime de lesão corporal leve ou culposa, praticado ou não no âmbito doméstico/familiar.

[15]             Quais sejam: a composição cível dos danos (art.74), a transação penal (art.76) e a suspensão condicional do processo (art. 89).

[16]             Isto significa, na prática, que, um dos juízes, ao exigir a representação da vítima, somente dará continuidade ao processo caso esta o autorize; já o juiz que entende ser inexigível a representação receberá a ação penal proposta pelo Promotor de Justiça, ainda que a vítima se oponha.

[17]             Uma vez presentes os indícios de autoria e materialidade, o Promotor de Justiça é legalmente obrigado a iniciar a ação penal.

O confronto de Tufão e Carminha: qualquer agressão contra a mulher é violência de gênero?*

A novela “Avenida Brasil”, de autoria de João Emanuel Carneiro, exibida pela Rede Globo de Televisão ganhou, mais uma vez, espaço na mídia e nas redes sociais: no capítulo exibido no dia 08/10/2012, a vilã Carminha, interpretada por Adriana Esteves, foi desmascarada por seu marido Tufão, personagem de Murilo Benício. Este, ao descobrir todas as fraudes levadas a cabo por sua mulher, agride-a fisicamente em meio a violenta discussão.

Diante dos atos praticados por Tufão, não foram poucos os comentários e protestos: Carminha estaria sendo vítima de violência doméstica? A Lei Maria da Penha poderia ser acionada contra Tufão? Vale colocar, então, o âmbito de incidência da Lei Maria da Penha, para tentar responder a essa pergunta.

A Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, tem por objetivo combater a violência doméstica praticada contra mulheres. Foi editada a partir da constatação de demandas específicas geradas por esse tipo de violência, que, segundo diversos estudos[1], apresenta características peculiares, que podem ser brevemente resumidas como uma relação de dominação da mulher por um homem com quem, na maioria dos casos, mantém uma relação afetiva, caracterizada por dependência emocional e (frequentemente, mas não necessariamente) financeira, com episódios cíclicos de violência que vão, aos poucos, crescendo em intensidade e gravidade ao mesmo tempo em que são naturalizados e banalizados pela vítima, pelo agressor e pelos familiares envolvidos. Levando em consideração todos esses fatores, a Lei Maria da Penha criou mecanismos que objetivam possibilitar à mulher vítima deste tipo de violência romper este ciclo.

Por pretender coibir exclusivamente a violência praticada contra vítimas do sexo feminino, a Lei Maria da Penha suscita muitas dúvidas a respeito de sua correta aplicação. Cabe aqui esclarecê-las:

Dúvida: A Lei Maria da Penha transforma a agressão doméstica contra a mulher em crime? O Código Penal já não considera crime a lesão corporal?

Resposta: a Lei Maria da Penha não tipifica a violência doméstica, pois não se trata de uma lei criminalizadora de condutas. O que a lei faz é definir o âmbito doméstico familiar e as relações afetivas (artigo 5º da Lei 11.340/2006) e determinar quais condutas se consideram violência doméstica contra a mulher (artigo 7º da Lei 11.340/2006). E então qualquer crime (que pode esta previsto no Código Penal, como injúria, ameaça, constrangimento ilegal, estupro, homicídio, e até lesão corporal, ou em lei especial, como a tortura) praticado contra uma mulher neste âmbito delimitado pelos mencionados artigos 5º e 7º autorizam a aplicação da Lei Maria da Penha.

Dúvida: Mas a Lei Maria da Penha fala de muitos tipos de violência em seu artigo 7º. E nem todas são crime. Como a lei pode atuar nesses casos?

Resposta: a Lei Maria da Penha tem natureza multidisciplinar. Por isso traz várias definições de violência e várias respostas além da penal: um caso de violência psicológica e patrimonial que não tenha previsão legal como crime pode ensejar uma separação de corpos acompanhada de uma medida protetiva de urgência de natureza cível, aplicada por um juiz da Vara da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.

Dúvida: Então a Lei Maria da Penha pode ser usada em casos não criminais?

Resposta: a Lei Maria da Penha prevê poucas medidas de natureza policial, embora estas sejam preferencialmente retratadas pela mídia, gerando a impressão equivocada de que se trata de uma lei penal. Mas a lei conta com uma série de disposições referentes à adoção de políticas públicas de prevenção à violência doméstica contra a mulher, incluindo, por exemplo, alteração nos currículos escolares do ensino fundamental, fiscalização de propagandas que reforcem estereótipos, inclusão dos agressores em programas de auxílio psicológico, entre outras medidas.

Dúvida: a Lei Maria da Penha só pode ser aplicada contra homens?

Resposta: não. A única distinção de gênero feita pela Lei Maria da Penha é em relação à vítima de violência, e não a quem a pratica. Se, por exemplo, uma mulher agride a própria mãe, com quem coabite, estará igualmente sujeita às medidas previstas na Lei Maria da Penha.

Diante do exposto, conclui-se que o texto da Lei Maria da Penha, se aplicado à ficção de “Avenida Brasil”, autorizaria o uso das medidas ali previstas contra Tufão, por ser ele marido de Carminha. Ainda assim, é de se questionar: a cena em que Carminha apanha de Tufão representa uma situação de violência doméstica contra a mulher?

Muito embora o texto da lei seja formalmente aplicável à situação ficcional, seu contexto não condiz com a trágica realidade de agressão doméstica perpetrada por pessoa de seu relacionamento próximo que muitas mulheres ainda vivenciam[2]. Carminha apanhou por ter enganado Tufão ao se casar com ele por interesse em seu patrimônio, levando ainda seu amante para dentro da casa onde morava com o marido, e enganado toda a família com toda sorte de golpes. Ao que parece, não existia na relação retratada na ficção[3] a tônica da submissão e da dependência afetiva e/ou financeira tão recorrentes nas situações de violência doméstica contra a mulher, e que ensejaram um tratamento jurídico diferenciado para estes casos.

Mas a cultura pop pode funcionar como valioso instrumento de observação de certos valores vigentes na sociedade, e com o estrondoso sucesso da novela “Avenida Brasil” não seria diferente. E então colocamos a pergunta: a surra que Carminha leva de Tufão indica a vigência de quais valores?

A Carminha de Adriana Esteves não é a primeira (tampouco será a última, ao que tudo indica) vilã castigada com um fim trágico ao serem descobertas suas tramoias. A Narazé vivida por Renata Sorrah em “Senhora do Destino” joga-se de uma ponte; a personagem Laura, de Claudia Abreu é surrada pela protagonista Maria Clara Diniz (Malu Mader) em “Celebridade”; e a inesquecível Odete Roitman de Beatriz Segall, vilã de “Vale Tudo” é assassinada com tiros à queima-roupa. Mas será que somente as vilãs do sexo feminino seriam destinadas a um desfecho violento, e mais, por motivação de discriminação de gênero? Lembremos alguns antagonistas do sexo masculino: o vilão Olavo Novaes, interpretado por Wagner Moura em “Paraíso Tropical” morre baleado no último capítulo; o amante de Laura em “Celebridade”, Marcos (Márcio Garcia) também é assassinado; e isso para não esquecer o espancador de mulheres interpretado por Dan Stulbach, também de nome Marcos, na novela “Mulheres Apaixonadas”, que termina a trama morrendo em grave acidente de automóvel.

Não se pretende aqui ingressar em uma análise das obras que compõem o gênero teledramatúrgico – tarefa que será feita com maior precisão e qualidade por especialistas no tema – mas um ponto comum parece emergir: mais do que a questão de supostos estereótipos de gênero aplicados às vilãs do sexo feminino, que seriam sempre castigadas com a violência física segundo alguns comentários feitos a respeito da cena em que Carminha apanha de Tufão, talvez o ponto nevrálgico destes desfechos seja a cultura do linchamento, onipresente na esmagadora maioria das tramas televisivas. O “bandido” não só não pode ser perdoado, como deve ser “justiçado”, se possível pelas próprias mãos daqueles que vitimou.

Terminamos recolocando a reflexão: quais são os valores vigentes indicados pelo sucesso da teledramaturgia?

 

* A cena está disponível em: http://globotv.globo.com/rede-globo/avenida-brasil/v/carminha-e-desmascarada/2179143/


[1] São profícuos os estudos que revelam padrões de agressão contra a mulher nos casos de violência doméstica. Sugere-se para consulta: pesquisa da Fundação Perseu Abramo (disponível em http://www.fpa.org.br/sites/default/files/cap5.pdf ) e algumas das pesquisas mencionadas no site da Agência Patrícia Galvão (disponível em: http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1975)

[2] A própria Maria da Penha, homenageada com o nome dado à lei de combate à violência doméstica no Brasil, entende que a personagem Carminha não foi vítima de violência doméstica. Entrevista concedida ao jornal Folha de São Paulo disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/71467-carminha-nao-sofreu-violencia-domestica-diz-maria-da-penha.shtml

[3] Diferentemente do relacionamento de outra obra de ficção, vivido entre as personagens Celeste e Baltazar, na novela “Fina estampa”, e que foi inclusive ilustrado com aplicação da Lei Maria da Penha.