O mundo sem as mulheres é um mundo com mais roupa pra lavar? É só isso?

“Que tal se todas as mulheres se ausentarem por uma semana, deixando os cuidados do lar e os filhos com os maridos? Essa é a desafiadora proposta da série ‘Mundo Sem Mulheres’. Onze mulheres do Parque Leopoldina, em Bangu, no Rio de Janeiro vão deixar suas casas e se hospedar num spa enquanto os homens vão ter que se virar para tocar suas vidas e famílias sem elas. 

Para os homens, o projeto promete ser revelador, desafiador, mas também divertido. Será uma possibilidade de envolver-se com o restante dos homens do bairro, lançar-se em atividades em grupo e passar mais tempo com seus filhos. Para as mulheres, é a chance de uma folga para relaxar, conhecer outras mulheres do bairro e pensar em como re-equilibrar as tarefas domésticas incluindo os outros moradores da casa.”

(descrição do reality show O Mundo sem as mulheres, disponível no site do canal pago GNT e exibido pelos canais GNT e Rede Globo no 1º semestre de 2013[1]).

O reality show “O Mundo sem as mulheres” exibido pelo GNT e pelo Fantástico na Rede Globo tem como proposta registrar o cotidiano de 11 famílias (e, vale a ressalva, aqui consideradas no modelo tradicional pai-mãe-filhos-todos-na-mesma-casa) cujas mães são retiradas do lar e enviadas a um SPA, tendo por consequência a delegação de todo o serviço doméstico para os homens, o que parece ser um fato digno de nota e de curiosidade o suficiente para ser transformado em documentário.

A ideia do programa é fácil de resumir na associação de tudo que é doméstico (ou seja, referente aos cuidados com a casa) e familiar (aqui, leia-se “filhos”, de preferência biológicos) ao universo feminino. Algo como explicitar de forma mais do que didática um padrão retratado e repisado de forma um pouco mais sutil em praticamente todos os comerciais de produtos de limpeza que toda hora dão na TV. Selecionei alguns para comentar aqui:

Vanish: comento duas propagandas. Uma delas é a única que encontrei protagonizada por um homem[2], que se preocupa com a limpeza dos lençóis por ser dono de uma pousada (ou seja, por ser seu trabalho, remunerado, como empresário). A outra (disponível apenas no youtube[3]), tem por título “Os direitos das mulheres”. O público-alvo do produto (ou “impactados”, para ficar no jargão publicitário) são as mulheres e por isso o vídeo, produzido predominantemente em cor-de-rosa, aborda dois grandes “interesses femininos”: a relação sexual-afetiva com os homens e a limpeza da casa. A piada central do anúncio é colocar um homem como objeto sexual em vez de uma mulher: é exibido um torso masculino nu (sem mostrar o rosto do modelo em momento algum) de um rapaz que manuseia o produto enquanto o narrador declama o texto de duplo sentido, emprestando conotação sexual ao uso do tira-manchas.

Veja: o multiuso tradicionalíssimo nos brinda com a personagem “A Neura da Limpeza”. Quer dizer: antes de conhecer o produto, a limpeza da casa fazia da protagonista uma neurótica pelos afazeres do lar, mal-humorada e que não sabia se divertir. Agora ela pode se divertir depois de limpar – brincando com o filho[4].

Ralo Tigre: embora não se trate propriamente de  um comercial de produto de limpeza, vale a menção neste texto. No vídeo[5], a piada reside no fato de uma moça jovem e bonita ir morar sozinha e sair para comprar um ralo – artefato relacionado à manutenção da casa e a materiais de construção (objetos do universo masculino). Ao ser atendida por um vendedor do sexo masculino, a família da moça invade a loja e revela a fraude – ela não ia morar sozinha coisíssima nenhuma – , arrebatando o rapaz para que ele se case com ela. A graça contida no texto: claro que ela só queria arrumar marido. Imagina, ir morar sozinha e ainda cuidar dos reparos do lar sem ajuda de ninguém?

Será que tudo é só uma piada? É reclamação de feminista mal-humorada? “Tá faltando louça pra lavar, né, minha filha?”

Para provocar a reflexão, vamos pensar um pouco nas propagandas de cigarro e de bebida, que há tempos têm sofrido forte controle social e estatal (e nem entro na discussão aqui se isso é positivo ou negativo), justamente pelo entendimento do quanto aqueles materiais reforçam modelos e estereótipos vendidos como positivos, desejáveis e normais (ou seja, de acordo com a norma). Já foi positivo, desejável e normal alguém saltar de asa-delta e fumar um cigarro na sequência, reforçando a associação entre esportes radicais, aventura e saúde ao uso do tabaco. Para quem tem menos de 30 anos, assistir aos comerciais de cigarro da minha infância na década de 1980 deve soar anacrônico como Jânio Quadros proibindo biquíni em concurso de miss Brasil.

Então por que insistimos na ideia de ser positivo, desejável e adequado à norma que o trabalho doméstico e os cuidados com a família sejam ainda o grande desejo e principal forma de realização pessoal das mulheres?

É fato que esta divisão sexual do trabalho acarreta problemas. E este problema gera consequências.

É fato porque as mulheres gastam muito mais tempo que os homens fazendo serviço doméstico. A divisão sexual do trabalho é considerada como algo que “é assim mesmo”, dando-se a falsa impressão de que uma persistente construção cultural faz parte da natureza humana. Segundo pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisas Avançadas (IPEA) as mulheres brasileiras despendem 26,6 horas/semana com os afazeres domésticos, enquanto os homens ficam em 10,5 horas/semana[6].

As consequências deste fato atingem a vida cotidiana de forma tão profunda que geram efeitos coletivos e individuais: a famosa dupla jornada feminina traz diversos comprometimentos de ordem social, tais como o direito a se aposentar antes do trabalhador do sexo masculino. E a desvalorização do trabalho doméstico e sua associação pejorativa com a feminilidade contribuiu para manter na invisibilidade a condição de trabalho das trabalhadoras domésticas, tão discutida agora com a chamada “PEC da domésticas”.

Individualmente, as mulheres deixam de ter tempo para si, para investir em seu trabalho e melhores carreiras, para estudo, para lazer. De outro lado, homens se distanciam dos filhos e tornam seres dependentes para cuidar da casa, que é mero reflexo da autonomia individual, e ainda são ridicularizados na sua tentativa de providenciar o próprio alimento e de manter a salubridade do ambiente em que vivem, o que são necessidades humanas e não “caprichos femininos”.

São realidades como a que discuto neste texto que mantêm necessária a existência de uma legislação que leve em conta a notável desvantagem histórica que (ainda) acomete as mulheres. Espero viver para ver o tempo em que não se precise mais falar de “direitos das minorias”. Que fique anacrônico como o falecido presidente da vassourinha e seus biquínis-tabu.

Deixo aqui um exercício para treinar a mudança de ponto de vista: uma campanha publicitária canadense elaborou um vídeo substituindo as mulheres por homens em situações nas quais parece ser “natural” a presença de uma mulher. Pode ser assistido neste link: http://www.good.is/posts/intermission-what-if-gender-roles-in-advertising-were-reversed .

Assista e (se quiser) volte para me contar: fez diferença ser um homem nos vídeos em que houve a substituição?

Como seria pensar um homem comemorando o novo desengordurante de fogão que o deixa com mais tempo livre para curtir a próxima troca de fraldas?